21 de maio de 2013

Era uma Vez... – Parte IV: E Viveram Felizes Para Sempre

Há maior significado profundo nos contos de fadas que me contaram na infância do que na verdade que a vida ensina.

- Johann Christoph Friederich v. Schiller -
E eis que chegamos à última parte do especial de aniversário... (Ísis: Aleluia, irmãos!) Não tenho muita certeza se me fiz bem entender ao longo dessa caminhada (Ísis: Hããããã...) – quando comecei a escrever, eu tinha uma idéia de falar dos autores – Perrault, os Grimm, Andersen, avançando para fabulistas modernos como Gaiman e Miéville -, uma vez que já tinha tratado um pouco das versões menos conhecidas desse tipo de história quando escrevi o ensaio sobre Creepy Fairytales. Mas enquanto ia pesquisando e desvelando esse ‘mundo encantado’, acabei percebendo que em vez de uma coletânea de autores, mais valia trabalhar em cima dos conceitos e teorias histórico-literárias muito pouco conhecidas do grande público. (Ísis: Ô! Dé: 1)

E claro que tudo isso não passa de mera desculpa para que eu possa ficar divagando feito uma maluca (Ísis: Ô! Dé: 2) e enfiando o nariz em livros obscuros que de outra forma eu nunca teria desenterrado...

Dé: E ficar feliz feito pinto no lixo, né? =P

Lulu: Bem, faz parte...

Tendo chegado a esse ponto, seria o momento de perguntar por que isso é importante, por que conhecer contos de fadas pode fazer alguma diferença na forma como você interpreta a vida.

Tolkien observa no ensaio Sobre Histórias de Fadas que um bom conto de fadas tem algumas facetas necessárias: fantasia, recuperação, escape e consolo – recuperação de um desespero profundo, escape de algum grande perigo, mas, acima de tudo, consolo. (Ísis: Ô! Dé: 3)

Lulu: Ísis, você andou comendo comida estragada de novo?

Ísis: Ô!

Dé: 4. Lu, pelo que vi, a Isis anda comendo MUITA coisa estranha no Japão...

É o final feliz, a esperança de ganho material, ilusões da felicidade por vir; os contos de fada, em sua essência, fornecem paradigmas sociais que se sobrepõem quase perfeitamente aos nossos sonhos de uma vida melhor.
O consolo das histórias de fadas, a alegria do final feliz, ou mais corretamente da boa catástrofe, da repentina “virada” jubilosa (porque não há um final verdadeiro em qualquer conto de fadas), essa alegria, que é uma das coisas que as histórias de fadas conseguem produzir supremamente bem, não é essencialmente “escapista” nem “fugitiva”. Em seu ambiente de conto de fadas - ou de outro mundo - ela é uma graça repentina e milagrosa: nunca se pode confiar que ocorra outra vez. Ela não nega a existência da discatástrofe, do pesar e do fracasso: a possibilidade destes é necessária à alegria da libertação. Ela nega (em face de muitas evidências, por assim dizer) a derrota final universal, e nessa medida é evangelium, dando um vislumbre fugaz da Alegria, Alegria além das muralhas do mundo, pungente como o pesar.

O sinal de uma boa história de fadas, do tipo mais elevado ou mais completo, é que, não importa quão desvairados sejam seus eventos, quão fantásticas ou terríveis as aventuras, ela pode proporcionar à criança ou ao adulto que a escuta, quando chega a “virada”, uma suspensão de fôlego, um batimento e ânimo no coração, próximos às lágrimas (ou de fato acompanhados por elas), tão penetrantes como aqueles dados por qualquer forma de arte literária, e com uma qualidade peculiar.
Considerem que à época em que Straparole e Basile escreviam suas histórias, não havia muitas formas de ‘melhorar de vida’ – e aliás, o casamento entre aristocracia e plebe era proibido por lei (Ísis: Ô! Dé: 5). Histórias como a do Gato de Botas, em que um rapaz pobre casa com a filha do rei graças à coragem e esperteza (do gato, mas pelo menos ele teve o bom senso de ouvir o bichano...) eram impossíveis de acontecer na vida real (isso já sem levar em conta o gato e o gigante da história). Não é uma coincidência que todas essas histórias aconteçam ‘num reino distante’ ou ‘muito tempo atrás’.

Dé: Podemos fazer um paralelo com a TV, dos dias de hoje. Com a profusão de filmes, novelas e minisséries mostrando uma vida “ideal”, a “vida dos sonhos”, ou uma realidade aonde todos são bonitos, atléticos e não tem que viver problemas do cotidiano (filas, engarrafamento, acabar o gás/água/energia etc), a menos que seja o foco da série, remetem bem a isso, não?

Lulu: Sim, eu concordo. Novela de hoje em dia tem a mesma função dos contos de fadas desse período...

O fato de que, mais que amor, esses contos primevos glorifiquem o ganho material advindo do casamento (o final feliz não é ficar com quem sem ama, mas se casar bem) diz muito a respeito da época em que os contos foram pensados. (Ísis: Ô! Dé: 6)

Dé: Triste é ver que ainda tem gente que pensa assim. Mas, capitalismo não perdoa ninguém...

Claro que com as mudanças sociais, também mudam os paradigmas dessas histórias: se antes você tem Bela descobrindo que mais vale a gentileza e companheirismo da Fera do que os maridos belos, ricos e vãos de suas irmãs (Dé: Mas eu sempre achei o fato de que a Fera ser, na verdade, um bonitão rico uma subversão dessa mensagem... Lulu: Bem, a Bela aceita o pedido de casamento dele antes de vê-lo em sua forma bonitão rico e inteligente, porque na versão original o coitado ainda foi amaldiçoado a ser um simplório ignorante...) – em sua versão mais conhecida antes da Disney, o conto é visto como um consolo para casamentos arranjados –, mais tarde você tem a passional Pequena Sereia, preferindo sacrificar-se e virar espuma do mar a quebrar a maldição com a morte de seu amado príncipe. (Ísis: Ô! Dé: 7)

E aqui há um ponto importante a fazer: ainda que identifiquemos contos de fadas com a idéia do ‘e viveram felizes para sempre’, essas histórias não necessariamente terminam com um final feliz. (Ísis: Ô! Dé: 8)

Lulu: Dé, a guilhotina está bem afiada? Eu gostaria que tudo terminasse com um golpe só.

Ísis: Ôôôôôôôô! (Mas por que que é o Dé que cuida da guilhotina? oO)

Dé: 9. Eu cuido por que também sou carcereiro e executor nas horas vagas. Tá bem afiadinha, Lu, a ponto de eu poder me barbear nela.

Ísis: De repente não tenho mais vontade de comer o que sai dessa cozinha... ¬¬

Lulu: Ok, deixe tudo preparado e a postos então...

E aí voltamos para aquela definição que tentei fazer na primeira parte desse ensaio. Há uma estrutura narrativa em que contos de fadas se encaixam, com uma linguagem em que predomina a oralidade, o ritmo da narrativa é bem marcado, há palavras-chave que jogam a história para além dos domínios da realidade e, sobretudo, há a sensação de encantamento, “uma suspensão de fôlego, um batimento e ânimo no coração, próximos às lágrimas”.

O especialista Jack Zipes observa bem isso na introdução do Oxford Companion to Fairy Tales:
Os personagens, cenários, e motivos são combinados e variados de acordo com específicas funções para induzir ao encantamento, o prodígio, a surpresa. É este sendo de assombrosa mudança que distingue os contos de maravilhas de outras narrativas orais, tais como a crônica, a lenda, a fábula, a anedota e o mito; e é claro que é o senso de mudança fantástica que distingue os contos de fadas literários da história moral, novela, conto sentimental e outros gêneros modernos de narrativas curtas.O maravilhoso causa admiração, e o objeto ou fenômeno prodigioso é muitas vezes encarado como uma ocorrência sobrenatural e pode ser uma profecia ou presságio.Ele dá origem à admiração, medo, respeito, e reverência.
Bons contos de fadas são aqueles que provocam esse sentimento de extraordinário, de mágico, de encanto (Ísis: Ô! Dé: 10). Eu nunca me esqueci da sensação de melancolia de ler Os Doze Irmãos, com a jovem princesa tecendo em cima de uma árvore sem poder falar (Ísis: ... Ok, esse eu não conheço... Ô! Quero ler! Dé: 11), rir ou chorar durante sete anos para poder libertar os irmãos ou dos devaneios que os vestidos de Pele de Asno me provocavam.

Tampouco posso deixar de lembrar das noites na calçada da minha avó, ouvindo histórias de trancoso, sonhando com as imagens que Nenê de Tali tecia com sua voz rouca – a pobre moça enterrada pela madrasta, cujos cabelos crescem como espigas de trigo (jardineiro de meu pai, não me cortes os cabelos... minha mãe me penteava, minha madrasta me enterrou, pelos figos da figueira que o pássaro bicou...), que vim reconhecer já crescida como uma variação da história O Junípero, dos Grimm.

Eu cresci ouvindo essas histórias, elas fizeram parte da minha formação como, acredito, muitos de vocês também. Tive a sorte, aliás, de ir para além das versões da Disney: alguns dos contos originais dos Grimm eu li sem adaptações ainda criança e tive mais de uma contadora de histórias para sussurrar cenas que me faziam viajar para muito, muito longe; que me fizeram acreditar em dragões e demônios, e que depois me acalmaram com heróis e espadas mágicas. (Ísis: Ô! Dé: 12)

Dé: No meu caso, não tive tanta sorte. Só conheci as versões da Disney, quando criança, só tendo contato com os originais quando adulto...

Lulu: Não se preocupe, Dé, pelo que andei vendo, essa é a regra, não a exceção...

Ainda hoje, sou fascinada por esse tipo de narrativa e muitos dos meus livros e autores favoritos estão dentro do gênero ou o homenageiam. Neil Gaiman, Terry Pratchett, Susanna Clarke, Charles de Lint, Gregory Maguire são todos autores contemporâneos que me fizeram apaixonar por suas versões de encantamentos, proibições, amores impossíveis e ‘era uma vez’. Eles têm um lugar de honra em minha estante e é para eles que muitas vezes me volto quando estou em busca de inspiração ou de consolo.

Independente das variantes, dos criadores, dos lugares em que foram geradas ou das mensagens que quiseram passar, o fato é que contos de fadas são histórias universais, que apelam ao sentimento de ser humano, que respondem a anseios, medos, desejos; que encantam, fascinam, deslumbram. (Ísis: Ô! Dé: 13)

Lulu: Pensando bem, não precisa afiar a guilhotina, não. Pode ser uma guilhotina sem fio para que haja a necessidade de fazer a lâmina cair várias vezes, estendendo o espetáculo.

CORTEM A CABEÇA DA ÍSIS ANTES QUE ELA ME DEIXE LOUCA!!!!


Ísis: Ôôôôô... *tentando lembrar o caminho para as colinas...*

Dé: 14. Olha, eu tenho um caldeirão com azeite fervente que eu sempre quis usar, Lu... Gosta da idéia? Posso ir tirar os ossos de dentro da Dama de Ferro também, se for o caso... Acho que cabe uma elefanta lá...

Lulu: Agora estás falando minha língua. ADORO a idéia da Dama de Ferro!

Dizem que contos de fadas são infantis (Dé: *gargalhada*). Sendo assim, não tenho muita certeza se cresci... Mas não creio que essas histórias devem ser relegadas ao quarto das crianças. E, ao final das contas, como bem disse C. S. Lewis: “um dia você será velho o bastante para voltar a ler contos de fadas”.

Dé: E ele sabia do que estava falando! =D

Ísis: Ô!

Dé: 15.

Que tal começar agora?

Ísis: Ô!

Dé: 16... *separa 16 facas e espetos*

Lulu: E como não podia deixar de ser, nosso especial, como muitos dos contos de fadas de que falamos, acará num banho de sangue. Até a próxima, pessoal!

Especial Era Uma Vez
Parte I – (In)definições
Parte II – Num Reino Tão, Tão Distante
Parte III – Dama Neurótica, Alfaiate Nervoso
Parte IV – E Viveram Felizes para Sempre

Especial Creepy Fairytales
Parte I
Parte II

Algumas Resenhas
Happily Ever After, Vários
Fábulas Italianas, Ítalo Calvino
103 Contos de Fadas, Ângela Carter
Fábulas, Bill Willingham
Once Upon a Time (série)
Black Swan, White Raven, Vários
Black Thorne, White Rose, Vários
Branca dos Mortos e os Sete Zumbis, Abu Fobiya
My Mother, She Killed Me, My Father, He Ate Me, Vários
The King of Elfland’s Daughter, Lord Dunsany
Stardust, Neil Gaiman
A Princesa e o Goblin, George MacDonald
A Mecânica do Coração, Mathias Malzieu
Un Lun Dun, China Miéville
The Well at the World’s End, William Morris
Lud-in-the-Mist, Hope Mirrless
Sonho de Uma Noite de Verão, William Shakespeare
Tales Before Tolkien, Vários
Tales From Perilous Realms, J. R. R. Tolkien

Outras Fontes
Oxford Companion to Fairy Tales, Org. Jack Zipes
Fairy Tales: a New History, Ruth Bottigheimer
Contos de Fadas: edição comentada e ilustrada, org. Maria Tatar
SurLaLune Fairy Tales


A Coruja


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