26 de fevereiro de 2013

Clube do Livro (Fevereiro): Mrs. Dalloway

Como somos uma espécie condenada, prisioneira num barco, como tudo é uma farsa de mau gosto, desempenhemos, afinal de contas, nosso papel; mitiguemos as penas dos nossos companheiros de prisão. Decoremos o calabouço com flores e almofadas; sejamos o mais corretos possível.
Virginia Woolf é uma escritora curiosa... eu gosto muito dos livros de ensaio dela; são sempre muito inteligentes, muito claros, com discussões muito pertinentes. Ao mesmo tempo, ela escreve romances muito densos, com aquela característica do fluxo constante de consciência que, para quem pega pela primeira vez, pode se tornar confuso. Ela é densa, e tira de situações e cenas completamente cotidianas um clima que às vezes parece sufocante. E se você não prestar atenção, nem vai perceber que existe um plot correndo, uma história e não apenas uma sucessão de fatos que parecem não ter conexão direta.

É engraçado porque da mesma forma que ela escreve textos pesados como Mrs. Dalloway (que tem uns meandros de interpretação bem tortuosos) e Orlando (com que me diverti a despeito de quase ter uma dor de cabeça tentando acompanhar e compreender todas as reviravoltas que aconteciam), ela fez delícias como Flush, que é um dos meus livros favoritos, com um texto leve, irônico, adorável, completamente oposto à força desses outros volumes.

A história se passa num fluxo constante de acontecimentos e pensamentos que ocorrem no decorrer de um único dia. Essa é uma característica forte do modernismo sendo o mesmo tipo de narrativa que James Joyce utilizou em seu clássico Ulysses - que, vou confessar, não tenho muita vontade de ler, considerando que são mais de mil páginas desse tipo de discurso e realmente não faz muito minha praia.

Enfim, sobre o Mrs. Dalloway... não se trata apenas da forma como a história é apresentada, mas o próprio clima do romance é sufocante. Clarissa é fortemente reprimida pela sociedade que a circunda, pelos papéis que tem de assumir: ela mesma reconhece que perde sua individualidade; ela não é Clarissa, mas Mrs. Dalloway. Ela é mãe e esposa e aparentemente uma queridinha da sociedade (ainda que as pessoas com quem temos contato não pareça gostar assim tanto dela). Septimus - cujo plot muito mais me interessou - é perseguido pelas lembranças da Primeira Guerra, tão assombrado por aquilo que viu e sofreu que se desconectou da realidade.

Quando falamos em Guerra, com letra maiúscula, sempre pensamos na Segunda Guerra, no trauma do nazismo e dos campos de concentração. Mas ignorando a parte dos campos, a Primeira Guerra foi muito mais traumatizante, especialmente para os soldados que passaram meses entrincheirados em condições absurdas - doença, sujeira, uma morte que os ia definhando aos poucos, enterrados vivos.

Não é à toa que Septimus termina tão perturbado.

Ambos os protagonistas - ainda que outros personagens apareçam e tenham seus pensamentos dissecados, Clarissa e Septimus são os que mais freqüentemente seguimos - passam boa parte do tempo relembrando, tendo flashbacks que se relacionam ao que está acontecendo em seu presente. Para Clarissa, são os tempos de juventude, a paixão por Peter, a atração por Sally, a chegada de Richard; para Septimus é a guerra, seu tempo nas trincheiras ao lado de Evans.

Há algumas coisas no romance que me ecoaram similares ao que eu conheço da vida de Woolf. Ela e a irmã Vanessa foram abusadas sexualmente pelos meio irmãos; uma de suas irmãs foi internada por problemas mentais e ela mesma chegou a ser colocada num asilo para loucos. Ela se casou convenientemente (ainda que sentisse afeto pelo marido, não me parece nada de passional) e teve uma relação com a senhora Vita Sackville-West, para quem escreveu Orlando como uma verdadeira carta de amor... Finalmente, em 41, após o início da Segunda Guerra e a destruição de sua casa em Londres, ela encheu o bolso do casaco de pedras e se suicidou afogando-se no rio Ouse.

O final do livro, que foi publicado em 1925, é quase como um oráculo. Inclusive, em versões anteriores da história, não existia Septimus e era a própria Clarisssa que terminava se matando, durante a festa ao final do livro. Para mim, Clarissa é muito de Virginia e esse flerte com a morte já era reflexo do que estava por vir.

Enfim, é um livro curto, angustiante, terrível em retrato de uma sociedade repressora, tradicional e sufocante. Não seria minha primeira escolha para tirar da estante: difícil, sim, mas abrindo espaço para reflexões importantes.


A Coruja


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